terça-feira, 7 de junho de 2011

O culto da abstracção



Ontem, pela enésima vez, o Dr. António Arnaut defendeu o SNS nos moldes em que a Constituição o consagra, mostrando-se - como sempre - inflexível em relação a qualquer mudança no sistema. Mesmo que este funcione mal, como é o caso. António Arnaut, tão cioso da integridade da Constituição, elevada à quase condição de dogma de fé, esquece que são cada vez mais os cidadãos privados dos necessários cuidados de saúde, consequência da incapacidade do sistema público responder às solicitações. Ora essa incapacidade poderia ser, em larga medida, superada através de uma maior colaboração entre os sectores público, privado e social, mas a Lei Fundamental limita-a fortemente, circunstância que impõe a sua revisão. Mas isso não parece preocupá-lo. Que os serviços prestados estejam a degradar-se, que o recurso à medicina privada ( uma boa parte dela - o que não deixa de ser irónico - propriedade do banco do Estado ) esteja a aumentar como consequência da degradação do serviço público, forçando os cidadãos a sustentar em simultâneo dois sistemas de saúde, nada disso é relevante, desde que não se toque no sacrossanto princípio da universalidade e tendencial gratuitidade do SNS.
É o típico apego à forma, à abstracção, que deleita a esquerda, que se satisfaz com a enunciação de princípios, mesmo que na prática se não apliquem. O que importa é a ideia, a realidade é um detalhe.
Que interessa, pois, que o SNS não garanta a todos os cuidados de saúde de que precisam? Nada! O que interessa é que a Constituição de Abril diga que todos devem ter acesso a estes.
A educação mostra graves deficiências de qualidade e o abandono escolar atinge valores elevados? Qual quê! A Lei Fundamental proclama o ideário republicano da escola para todos, é o que basta.
Portugal é o país mais desigual da Europa? Que interessa isso? Então não está constitucionalmente consagrado o "caminho para uma sociedade socialista"?
O que é a concretude, a vida quotidiana das pessoas, perante a grandeza dos valores enunciados por mentes preclaras nos salões, entre um trago de conhaque e uma passa no charuto?

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